A história de Solar, uma Doteira na Ucrânia
Eu poderia escrever sobre o novo patch, trazer percentuais, taxas, simulações, tendências, porém entendi ser mais relevante multiplicar a perspectiva e a mensagem de uma integrante da comunidade mundial de Dota2 sobre a atual situação que vem desolando o leste europeu.
Hoje, o texto é da streamer ucraniana Solar, ou solarisdotaa. A jovem de 24 anos reside (ou residia) no oeste da Ucrânia, e relatou o que aconteceu com ela entre os dias 24 e 26/02/2022.
Solar começa o texto afirmando que sua escrita em inglês não é tão boa, então condensaria algumas partes; na tradução, condensei mais algumas partes para não perder o sentido; de toda forma, o link para o texto completo, assim como o Twitter e a Twitch dela seguem no final da matéria.
Com a palavra, Solar:
“Noite 24: logo após o lançamento do patch, eu estava jogando dota e por volta das 5 da manhã decidi abrir o twitter para rolar as coisas entre os jogos. As primeiras coisas que vejo: vídeos de grandes explosões noturnas, dizendo que eram em grandes cidades ucranianas. No começo eu pensei que era falso e meu cérebro não queria entender o que estava acontecendo.
Na hora seguinte, até minha mãe acordar, eu estava tentando encontrar mais informações.
Quando ouço que minha mãe está acordada, eu vou lá dizer a ela ‘mamãe eles começaram a nos bombardear’, ela parece não levar a sério o suficiente (mesmo que ela tenha verificado a TV e com seus amigos) e saiu para o trabalho. Eu sento, sem entender por que todo mundo está tão calmo. Liguei para um amigo, e disse: ‘acorda homem, a guerra começou, eles bombardeiam Kiev’ e ele respondeu: ‘que Kiev, estou dormindo’.
Por volta das 7h do dia 24: saio para comprar cigarros (não fumo, mas precisava de algo), comida de gato e garrafinhas de água para o caso de ter que me esconder em algum lugar. As pessoas ao redor estão andando com enormes garrafas/sacos.
Chego em casa, tento falar com mais amigos, mas poucos minutos depois ouço sirenes. Estou sozinha em casa, sem nem saber o que é ‘bombshelter’, tentando sair o mais rápido possível, sai correndo e como minha mãe me disse “olhe para onde as pessoas correm para se juntar”, mas ninguém está correndo. Desço a rua, vejo um homem fumando ao lado de um prédio movimentado e pergunto ‘você sabe se tem abrigo?’, ele me diz que tem um porão grande, mas devo ficar calma, pois ninguém realmente vai para abrigos. Fico ali mais alguns minutos e vou para casa. Tento ligar para um amigo, mas assim que começo a falar com ele ouço outra sirene. Eu corro de novo, ninguém se importa de novo, mas estou com muito medo de ir para casa. Eu só fico na esquina e choro, minha mãe me liga e consigo falar com ela.
Dia, ainda 24: estamos em casa, mamãe está fazendo as malas para o caso de termos que ficar no abrigo, estou completamente perdida olhando para a tela tentando encontrar alguma notícia. O dia INTEIRO tudo que eu fazia era rolar notícias. Eu não comia nem falava com ninguém. Eu não estava fazendo nenhum plano, eu ainda não conseguia acreditar que tudo estava acontecendo e eu realmente não conseguia pensar que teria que ir embora. Claro, mais algumas sirenes durante o dia.
Noite, 25: vídeos de grandes explosões aparecem. Ao contrário do primeiro dia, não é apenas leste/sul, está em todos os lugares, incluindo Ivano Frankivsk, que fica bem ao lado da minha cidade, também acho que 3 objetos ao redor da minha cidade também foram bombardeados (não me lembro muito bem dessa parte). Entro em pânico muito forte, estou tremendo e mal consigo respirar, só consigo pensar ‘se conseguir chegar até de manhã quero estar o mais longe possível’. Bilhetes de ônibus/trem indisponíveis.
Bom dia, outra sirene. As pessoas começaram a sair e se esconder em porões. Muitas mulheres com filhos. Poucas sirenes naquela manhã. Continuamos entrando e saindo. Mais vídeos/informações sobre explosões na Ucrânia.
Entro em contato com meus amigos pensando que talvez eles saiam de carro e possam me levar, quando consigo falar com um deles ele me diz: ‘é tarde demais, todo homem de 18 a 60 anos não pode mais sair do país’.
Eu pergunto às garotas que conheço, mas ninguém vai embora. Lembro-me aleatoriamente, havia uma streamer de Dota de Kiev, procuro o Instagram dela e vejo que ela está procurando alguém de carro para irem juntos para à fronteira. Eu mando uma mensagem para ela, ela diz que está completamente sozinha e nem sabe como chegar a Lviv. Perguntei a ela, quando você chegar aqui, você quer ir para a estação de trem juntos? Ela concordou e conseguiu comprar uma passagem para Lviv e que estaria aqui por volta das 15h. Eu relaxo um pouco e decido dormir pelo menos algumas horas antes disso.
Vou para a cama (totalmente vestida) e 20 minutos depois de conseguir adormecer sou desperta com outra sirene. Estou sozinha em casa, tento correr para um abrigo, mas minhas pernas estão tão fracas e tremendo que mal consigo andar. Enquanto estou do lado de fora, a garota (a streamer de Kiev) me chama para dizer que o trem dela não está lá e ela está procurando outra coisa. Volto para casa, e minha mãe também está de volta, ela começa a arrumar minha mala e tentar encontrar algum dinheiro (tivemos uma situação muito difícil depois do inverno e não tínhamos economia nenhuma). Encontramos algo em torno de $150 euros são como $100 dólares, ela tentava encontrar algo de ouro para que eu pudesse trocar por passagens, se necessário.
De repente, a garota liga dizendo: ‘encontrei um trem que vai direto para a Polônia com uma parada em Lviv em uma hora’. Moro a 40 minutos da estação de trem, percebo que não tenho tempo para me preparar, pego a bolsa, beijo meus gatos e minha mãe me segue até a estação de trem.
Dia, 25: chegamos lá, está lotado, o único trem na plataforma está cheio (as pessoas estão sentadas no chão, não há nem mesmo lugar para andar) e as portas estão fechadas. Vemos um cara, gritando alguma coisa sobre passagem, tentando entrar. Eu corro atrás dele (por quê? não sei), ele chega na porta tentando mostrar às pessoas que tem uma passagem, o condutor abre a porta para ele e quando ele entra minha mãe pergunta ‘você pode por favor levá-la também, ela está sozinha’. O cara me olha e pergunta ‘você tem passaporte?’.
Não acredito, entro no trem, minhas mãos tremem tanto que precisei de um minuto para abrir a mala e encontrar um passaporte. Ele olha, pergunta ‘quantos anos você tem?’ e eu penso ‘estou fodida, talvez ele pense que eu sou mais jovem e vai me expulsar se eu disser que tenho 24 anos’, mas ele apenas acenou com a cabeça e devolveu meu passaporte. Na próxima hora, o controle de fronteira verifica o trem procurando algum homem de 18 a 60 anos, toda hora eu tenho medo que eles me expulsem. Finalmente o trem começa a se mover. Eu não consigo parar de chorar. Mãe, os gatos ainda estão em casa. Minha mãe tem minha avó para cuidar.
Noite, 26: depois de 6 horas de trem (3 delas na fronteira), chegamos a Przemysl, onde devo encontrar a garota. Eu não tenho ideia para onde ir, ela está 3-4 horas atrasada, e eu estou com frio e mal posso ver. Seguindo pessoas encontro um lugar onde voluntários ajudam ucranianos. Eles dão comida, água, há um lugar para descansar e dormir. Eles me deram um cartão de telefone para ligar/usar internet. As pessoas oferecem passeios gratuitos para cidades na Polônia. Eu fico lá por algumas horas esperando por aquela garota e mandando mensagens para as pessoas tentando fazer um plano para onde ir e o que fazer. Ainda não tenho nenhum plano.
A menina chega por volta de 1 da manhã, ela pega uma tigela de sopa (não é bem uma sopa, não sei o que era) de voluntários, eu tento comer um pouco também, mas sinto que se eu pegar mais de 3 colheres eu vou vomitar (a comida era ótima, muito obrigada a quem traz comida e cozinha para as pessoas de lá).
Um homem pergunta para onde vamos, ela diz que deveríamos chegar a Cracóvia (porque Cracóvia ficava poucas horas mais perto do que Varsóvia). Ele e seu amigo (eram 2 ucranianos que moram na Polônia) não eram da Cracóvia, mas eles dizem vamos, vamos levá-las até lá. Eles nos levaram de carro até o hotel, onde sua irmã reservou um quarto para nós. Eles perguntaram sobre nossos planos, um deles me deu um número de telefone e me disse para ligar se algo der errado e eu precisar de ajuda.
No hotel, ela instantaneamente vai dormir, e às 3 da manhã meu amigo entra em contato comigo e me dá uma passagem para a cidade dele em 15 horas. Ainda não consigo comer/dormir e não tinha ideia do que preciso para embarcar no avião e como fazer o teste de Corona. Eu continuo entrando em contato com as pessoas, tentando fazer um plano, mas ainda há muitas coisas que eu não tinha ideia de como fazer. Por volta das 6 da manhã, consigo adormecer e durmo uma ou duas horas.
Dia, 26: a menina sai para o aeroporto às 9 da manhã porque tem um voo cedo, então eu só vou com ela porque não tinha ideia de como pegar um táxi ou quanto tempo vou precisar para fazer o teste e trocar meu dinheiro para zlótis. Depois disso, só espero as próximas 8 horas pelo voo. Teve algumas pequenas histórias sobre meus problemas de check-in, mas não foi nada grande.
Noite, 26: quando chego ao avião estou realmente exausta, compro uma garrafa de água e espero não desmaiar. Eu sabia que tinha uma parada muito curta em Frankfurt e poderia não ter tempo nenhum, então não consegui dormir. Ainda me sinto bem, e pensei que não restava muito. Tudo que eu tinha que fazer, entrar no avião, fazer um voo de 2h, pegar outro avião em Frankfurt e pegar um avião para Madrid. Mas, quando o avião entra no ar, de repente percebo, meu corpo finalmente atingiu seu limite. Começo a tremer como uma máquina de lavar, meu coração batendo forte como se eu tivesse feito um rampage no dota e na parte mais merda – eu estava sentada no meio então não tinha nem um pequeno espaço para me mexer ou colocar a cabeça. Pela primeira vez eu realmente pensei ‘eu não vou conseguir’. Tentei beber água, ajudou um pouco, mas ainda estava tremendo. Fechei os olhos… E só voltei a abri-los horas depois. Estava dormindo no ombro de algum cara, pelo menos ele não reagiu. Desculpe irmão.
Em Frankfurt, fomos transportados muito rápido. Chegamos ao avião e finalmente pude tentar dormir uma hora.
Cerca de 2 horas depois, estou finalmente em Madrid. Saio do aeroporto (onde ninguém fala inglês por algum motivo) e encontro meu amigo. Quando estou na casa dele, quase me sinto bem, mas então entro em contato com minha mãe e descubro que minha avó morreu e ela tem que cuidar do funeral amanhã.
Às 4 da manhã, depois de comer e conversar com minha mãe/amigos, finalmente vou dormir. Esse foi um dia muito longo.”
Agora em Madrid, talvez Solar volte a fazer suas transmissões. Vou deixar o link do seu canal aqui para que todos possam se inscrever e deixar seus votos de condolência e enviar mensagens positivas!
Solar escreveu essa carta em um TwitLonger, também compartilho seu Twitter para lerem na integra e poderem mandar mensagens por lá também!
Texto: Solar
Tradução: Refresh
Revisão: Vitor Santos
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